Eles estão surdos
A cidade de Mendoza, na Argentina, recebe em média (nos últimos cinco anos) um milhão e meio de turistas
*Artigo de Julio Gavinho
Vocação é a corruptela portuguesa para o verbo latim “vocare”. Claro que você sabe que o significado é “chamar”, de tanto ouvir menções religiosas sobre o chamado. Este chamado está associado a uma habilidade ou característica que dá destaque. Uma bela e exclusiva praia por exemplo, tem vocação para turismo, capice? A vocação precisa de estudo e preparação para seu pleno aproveitamento.
Agora preste atenção…
A cidade de Mendoza, na Argentina, recebe em média (nos últimos cinco anos) um milhão e meio de turistas. Destes, 30% são estrangeiros e 70% hermanos. Dos estrangeiros são 50% de brasileiros (que representam 15% do total) que permanecem entre 5 e 7 dias e os seus conterrâneos ficam em Mendoza entre 3 e 4 dias. Da massa total de visitantes, apenas 25% são turistas de lazer, e o restante é dividido entre negócios e eventos.
A primeira quinzena de março é a vindima, principal período de visitantes de lazer do ano. No inverno, Mendoza é o playground dos brazucas. Tanta gente pulando e falando alto que parece até um novo terremoto na cidade.
Embora nossa visão alcoólico-idílica nos leve a pensar que o vinho seja o grande vetor turístico da região, esta afirmação não é de todo verdade. São cerca de 1.000 (isso, mil!) vinícolas na região primária de Mendoza, porém menos de 50 oferecem um produto turístico formatado com visita, história e prova.
O enoturismo responde por menos de 1% das receitas das grandes vinícolas cujo capilé vem mesmo é da exportação de vinhos. Ainda assim, com seu um porcentozinho, há o movimento vital para hotéis, bares, restaurantes e agências que, estes sim vivem bem do vinho Mendocino. Ainda assim, algumas vinícolas atendem o turista meio que a contragosto, pois seu real business é exportar. Eu por exemplo, agendei uma visita a Bodega Cobus, uma das mais prestigiadas do cone sul e seguramente a menina dos olhos do turismo da região. Pois bem: atrasei na saída da visita a Bodega Mendel, e cheguei 10 minutos depois do horário agendado na Cobus. Fomos barrados na porta sob a desculpa de que estavam com um grupo grande e não nos poderiam atender de forma privada. Note bem que eu paguei (e bem) por esta visita com prova dos vinhos avaliados com 90 pontos no mínimo. Há decerto a vocação turística, mas uma certa dificuldade em formatar produtos turísticos. Meio como o Brasil que sofre com suas belezas e seu povo, mas pouco planejamento ao redor de sua duvidosa vocação.
Mendoza vive uma crise pluviométrica e hídrica há 8 anos, prejudicando profundamente as estações de esqui dado a falta de neve. Penitentes por exemplo, estação inaugurada em 1928 sofre muito com a falta de neve, logo de turistas. Mendoza e seu entorno vivem da água do degelo dos Andes. Detalhe: os Andes, e claro o Cerro Aconcágua, foram das maiores belezas que eu já testemunhei na minha vida. Fui visitado por uma raposa vermelha e um falcão dos Andes na minha subida a 3.600 metros. Coisa que segundo nosso guia, ele não viu em 20 anos de profissão. Estas oito horas de Aconcágua pagaram minha viagem. Estávamos eu, minha esposa e mais um casal. E só.
Eu passei uma semana em Mendoza, em uma viagem em parte de negócios, mas principalmente de lazer. Eu não estaria exagerando se dissesse que às vezes fomos “Malbec” (que significa mal gosto) tratados em alguns lugares. Coisas simples desde trocar acompanhamentos ou assentos na varanda para fumantes, até pratos gelados devolvidos no detestável restaurante Josefina e, ainda assim, cobrados.
Mendoza deixou-me um gosto amargo de comparação com o Brasil. Atrações fenomenais como Aconcágua e Las Leñas, cassinos, bodegas famosas nas lojas do Patropi e um povo vencedor de terremotos, não criam produtos turísticos consistentes per se.
A definição do que ser trabalhado turisticamente vem do bom ouvido para a sua própria vocação. O planejamento de promoções, treinamentos e incentivos fiscais deve estar alinhado com o som alto e potente desta vocação gritando alto quais os produtos turísticos você deve estruturar, promover e vender e claro, para quem. Muito, mas são muito parecidos conosco neste aspecto, os Hermanos. Belíssimos por naturaleza, pero mucho que trabajar todavia.
*Julio Gavinho é executivo da área de hotelaria com 30 anos de experiência, fundador da doispontozero Hotéis, criador da marca ZiiHotel, sócio e Diretor da MTD Hospitality.