Análise do tratamento sutil de dados pessoais na hotelaria
A conformidade com a LGPD transcende a mera obrigação legal; tornou-se um fator crítico para a reputação e a sustentabilidade dos negócios no setor

Artigo de Josmar L. Giovannini Jr.*
Introdução
A indústria hoteleira, pela sua própria natureza de hospitalidade e prestação de serviços personalizados, opera em um ambiente onde o tratamento de dados pessoais é não apenas constante, mas intrínseco às suas atividades. Desde a reserva até o check-out, e frequentemente para além da estadia, hotéis coletam, processam e armazenam uma vasta gama de informações sobre seus hóspedes. A entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei nº 13.709/2018, representou um marco regulatório fundamental, estabelecendo um novo paradigma para a privacidade e a proteção de dados no Brasil. A conformidade com a LGPD transcende a mera obrigação legal; tornou-se um fator crítico para a reputação e a sustentabilidade dos negócios no setor, sendo essencial para construir e manter a confiança dos hóspedes, além de evitar sanções administrativas e financeiras que podem ser significativas.
Estes artigos se propõem a ir além das operações de tratamento de dados mais evidentes e rotineiras na hotelaria, como os processos de reserva, check-in e pagamento. O foco reside na investigação e análise das formas sutis, frequentemente despercebidas pelos titulares, pelas quais os estabelecimentos hoteleiros tratam dados pessoais de seus clientes. Serão exploradas atividades que, embora possam parecer corriqueiras ou meramente operacionais, envolvem a coleta e o uso de informações pessoais de maneiras que nem sempre são transparentes quanto à sua real extensão, finalidade ou base legal.
Tratamento Sutil de Dados Derivado do Uso da Infraestrutura e Serviços do Hotel
Além das interações diretas, a simples utilização da infraestrutura e dos serviços disponibilizados pelo hotel pode gerar um volume significativo de dados pessoais, cujo tratamento muitas vezes ocorre de forma secundária e pouco perceptível ao hóspede. Detalharemos um pouco mais estas situações a seguir.
2.1. Registros de Acesso Wi-Fi:
* Dados Coletados: A oferta de acesso à internet via Wi-Fi, uma comodidade quase universal na hotelaria moderna, frequentemente implica o registro automático de diversos dados técnicos e de uso. Estes podem incluir identificadores únicos do dispositivo conectado (como endereço MAC e endereço IP), tipo de dispositivo, versão do sistema operacional, horários e datas de conexão e desconexão, duração das sessões, volume de dados trafegados e, em alguns casos, os nomes de domínio dos websites visitados. Embora o conteúdo específico de comunicações em sites seguros (HTTPS) geralmente não seja acessível ao provedor da rede, os domínios acessados podem ser registrados. Adicionalmente, informações sobre a localização aproximada do dispositivo dentro do hotel podem ser inferidas através dos pontos de acesso Wi-Fi utilizados.
* Finalidades Declaradas e Implícitas: As finalidades ostensivas para essa coleta costumam ser a gestão técnica da rede (garantir a qualidade do serviço, alocar largura de banda de forma equitativa, evitar abusos) e a segurança (identificar e bloquear atividades maliciosas ou suspeitas). O cumprimento de obrigações legais, como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) que exige a manutenção de logs de conexão, ou a resposta a notificações sobre violações de direitos autorais e o monitoramento de acesso a conteúdos restritos por lei, também são justificativas comuns. Contudo, esses mesmos dados podem servir a finalidades secundárias menos evidentes, como a análise de tendências de uso, a inferência de interesses e preferências dos hóspedes com base nos sites visitados ou no tempo de uso, e até mesmo o direcionamento de marketing e ofertas personalizadas, especialmente quando o acesso Wi-Fi é vinculado a um perfil de hóspede existente (por exemplo, através do número do quarto ou do programa de fidelidade).
* Porque é Sutil/Despercebido: A sutileza deste tratamento reside em diversos fatores. Primeiramente, os hóspedes tendem a encarar o Wi-Fi como uma utilidade básica, focando na conveniência do acesso (seja ele gratuito ou pago) e raramente dedicando tempo à leitura atenta das políticas de privacidade ou dos termos de uso associados, que podem conter informações sobre o monitoramento. Em segundo lugar, existe uma percepção equivocada comum de que a utilização do modo de navegação “privado” ou “incógnito” dos navegadores impede qualquer tipo de rastreamento pela rede, o que não é verdade – ele apenas evita que o histórico seja salvo no dispositivo do usuário, mas não na rede do hotel ou pelo provedor de internet. Por fim, a coleta desses dados ocorre de forma passiva e automatizada em segundo plano, sem requerer qualquer ação ativa do usuário após o processo inicial de conexão, tornando o monitoramento invisível na prática diária.
* Implicações e Desafios – LGPD: A forma como os dados de Wi-Fi são coletados e utilizados levanta questões importantes sob a LGPD. A principal delas é a falha na transparência. A desconexão entre a expectativa do hóspede (serviço básico de conectividade) e a realidade (monitoramento detalhado e potencial perfilamento) indica que o princípio da transparência pode não estar sendo adequadamente atendido. O consentimento para usar a rede, mesmo que obtido, pode não ser suficientemente informado sobre todas as finalidades do tratamento, especialmente as secundárias como marketing. A facilidade e a necessidade percebida do acesso acabam por ofuscar a complexidade do tratamento de dados que ocorre por trás. Outro ponto crítico é a ampliação da finalidade. Utilizar dados de navegação ou de uso da rede para fins de marketing ou personalização de ofertas extrapola a finalidade primária de fornecer conectividade. A LGPD exige que cada finalidade seja específica, explícita e informada. Portanto, finalidades secundárias como o perfilamento para marketing necessitam de uma base legal clara e distinta – seja um consentimento específico e destacado, seja um legítimo interesse robustamente justificado e comunicado, com garantia do direito de oposição (opt-out) – o que frequentemente pode não ocorrer de forma adequada. Por fim, há um paradoxo entre segurança e privacidade. Embora o monitoramento possa ter como objetivo legítimo a segurança da rede, a própria coleta e armazenamento desses logs detalhados criam um ativo de dados valioso. Em caso de incidente de segurança e vazamento desses dados, informações sobre os hábitos de navegação e atividades online dos hóspedes podem ser expostas, representando um risco significativo à sua privacidade. A medida de segurança (monitoramento) gera, assim, um novo risco (concentração de dados sensíveis).
O tratamento sutil de dados pessoais na hotelaria brasileira, exemplificado pelos registros de acesso Wi-Fi, evidencia o delicado equilíbrio entre operações técnicas e exigências regulatórias. Para alcançar conformidade efetiva com a LGPD, o setor hoteleiro deve implementar uma abordagem que integre requisitos legais às práticas de TI, priorizando transparência nas comunicações, minimização de dados e clara segmentação de finalidades. Este equilíbrio permitirá manter a hospitalidade característica do setor sem comprometer os direitos fundamentais de privacidade e autodeterminação informativa dos hóspedes.
*Josmar L. Giovannini Jr. Engenheiro, Fundador e Presidente da Conformidados Treinamento, Educação e Consultoria Ltda. (conformidados.com.br)
Aviso Legal: Este texto sobre a LGPD é fornecido apenas para fins informativos e não deve ser considerado como aconselhamento jurídico ou orientação profissional. As informações aqui contidas não se destinam a ser uma interpretação abrangente ou exaustiva da LGPD. A aplicação da LGPD pode variar dependendo de circunstâncias individuais, e os leitores são encorajados a buscar aconselhamento profissional especializado para entender como a lei se aplica em seus casos específicos. O autor e o editor deste texto não se responsabilizam por quaisquer danos ou perdas decorrentes do uso das informações aqui contidas.